terça-feira, 27 de janeiro de 2009

No ponto final

Morgan Freeman sentou ao meu lado. Embarcou na Avenida do Estado, em meio aos galpões abandonados da Mooca. Lento e curvado, esfregou o bilhete de idoso no leitor óptico e se espremeu contra a catraca. Largou no chão uma bolsa preta e resmungou alguma coisa com o cobrador, que resmungou de volta. Às vezes eu tenho a impressão de que as pessoas dessa cidade se comunicam por códigos, tudo parte de um complô para tornar os estrangeiros cada vez mais estrangeiros.

Procurava algum pretexto para investigar Morgan, ver como estava, afinal, depois de uma longa carreira e de tantos filmes com lições de moral pretensiosas. Sua aparência, suas roupas, suas mãos. Tentando disfarçar, olho para os lados e vejo construções que a natureza já incorporou, onde agora árvores nascem e crescem no cimento. Do lado esquerdo, o que Pita chamava de “Fura-Fila”, a Marta de “Paulistão” e o Serra de “Expresso Tiradentes”. Um imenso cordão amarelo e arredondado, que burla o trânsito tenso e faz com que grandes ônibus verdes flutuem na direção de um infinito cinzento.

Só fui conseguir olhar para Morgan perto da estação Ana Neri, quando ele esticou o pescoço de leve, na busca de algo, alguém, informação qualquer. Assim vejo o que ninguém vê, nos filmes hollywodianos. Morgan sem maquiagem tem a barba mal feita, cinza-marrom achatada, espessa perto das orelhas e rala no queixo. A pele seca, suja e gasta, parece feita do mesmo material que suas sandálias. Longe daquele ator com expressão sábia de Um Sonho de Liberdade, o homem que vejo lembra mais o mendigo de O Todo Poderoso.

Sempre desço na Anhaia Mello. Levanto do banco e fico quase em pé, esperando que Morgan recolha as pernas para que eu possa passar. Não peço licença, não digo nada. Ele demora a notar que vou descer. E quando nota, me olha nos olhos. Só então reparo que Morgan Freeman tem, também nos olhos, a cor marrom. Completamente marrons. Sabe aquela parte branca que todo mundo tem nos olhos? O Morgan Freeman não tem. Só marrom, um único tom de marrom.

Não sei por quanto tempo ele me olhou nos olhos. Sei que quase perdi o ponto. Só consegui passar para o corredor quando suas pálpebras morreram sobre sua vista, tão sujas quanto suas sandálias. Desci e fiquei olhando pela janela. Continuavam fechadas, as pálpebras de Morgan Freeman. Talvez tenha muito sono, provavelmente cansado de fazer os novos filmes do Batman. Ou isso, ou ele pode dormir porque desce no lugar onde todos os homens e mulheres com sandálias rasgadas cor-de-pele-morena descem. No ponto final.